Mas o que aconteceu conosco foi algo tão bizarro!
É exatamente assim que me senti ao ler essa HQ. Ao concluir o folhear de suas páginas, fiquei estaticamente paralisada, olhando para essa bela edição da darkside books que com certeza nos encanta à primeira vista, mas me questionando: “que raios acabou de acontecer”?
Em primeiro lugar, acho importante reforçar que “Aurora nas sombras” não tem relação alguma com a princesa adormecida dos contos de fadas. Apesar de seu nome e aparência, a protagonista dessa obra tem uma jornada que se assemelha mais com o universo de “Alice no País das Maravilhas”, só que de maneira bizarra. É essencial termos a expectativa certa durante essa leitura, para conseguirmos absorver todas as críticas feitas, bem como, o baque que ela irá nos causar.
A narrativa é sobre um grupo de seres minúsculos do tamanho de insetos ou larvas, que precisam deixar seu habitat em busca de comida. Só que o antigo “lar doce lar” das criaturas é simplesmente um cadáver humano. As mortes, como elas acontecem e são descritas nesse quadrinho, não são para os fracos de estômago. É que ao longo de toda trama vamos vendo seres comendo as carnes da criança morta, se automutilando para alimentar, seres sendo enterrados vivos e outros mortos pelo gigante, animais e plantas. Tudo isso muito bem descrito e desenhado. O que te faz, por algumas vezes, até questionar se está realmente entendendo o que está acontecendo até aquele momento.
Então, não se deixe enganar pelos belos traços dessas ilustrações. Apesar da delicadeza que envolve seus desenhos e das cores que permeiam as laudas dessa história, o vermelho sangue é muito mais gritante que a inocência colorida dos cenários criados. A verdade é que, essa HQ transcende o nosso imaginário e nos arremessa com brutalidade de volta ao mundo real.
Abordando questões como desonestidade, vingança e imoralidade, a obra escancara o nosso lado mais sombrio na busca pela sobrevivência, trazendo à tona a podridão humana e a decadência social de maneira bastante crua. O contraste entre a colorização em aquarela e o traço infantil e querido da dupla Kerascoët, pseudônimo do casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset, e o roteiro cheio de falas malignas e acontecimentos bizarros, trágicos e violentos de Fabien Vehlmann monta um universo chocante e que prende os olhos do leitor da primeira à última página. O resultado é uma leitura intensa, que proporciona diversas sensações ao longo de sua duração, como surpresa, repulsa, conflito. Também se revela, ao seu final, uma das experiências mais intensas que você terá que descobrir.
Por fim, preciso reclamar de dois problemas, um deles grotesco, feitos pela editora. O primeiro é sobre a tradução do título, BEAUTIFUL DARKNESS, que perde o significado dentro da história para um AURORA DAS SOMBRAS. Estranho que uma editora que tem muitos dos seus livros com títulos não traduzidos, traduz um de uma forma duvidosa. O segundo problema é pior: a personagem Tiana, na obra original, se chama Timothy, é um personagem andrógino, porque ele possui um nome masculino, com uma aparência afeminada, que passa por problemas de aceitação, e cujo destino, que é uma das partes mais pesadas da história, é uma alegoria para os jovens que não conseguem se abrir para o mundo da forma como se sentem e como são marginalizados e excluídos por causa dessas diferenças.
Indicada ao prêmio Eisner em 2015, “Aurora nas Sombras” é uma obra que vai encantar os apaixonados pelos verdadeiros e macabros contos de fadas, aqueles onde os finais felizes e as situações açucaradas passavam longe; é uma fábula bela e bizarra que proporciona reflexões sobre o amadurecimento diante de um mundo marcado pela crueldade e egoísmo, mas de uma forma completamente engraçada.
Parabéns pelo trabalho!
Desejo-lhes sucesso.