A Compra

Acordou pontualmente às oito da manhã. Nada de atrasos, os dois meses em que acordava após o meio dia foram suficientes.

Correu para o chuveiro e deixou a água percorrer o corpo, que ganhou algumas curvas adicionais com o isolamento social. A depilação também se recusou a ficar trancada em casa e os pelos aproveitaram para crescer, interrompidos vez ou outra pela lâmina de barbear do banheiro da mãe.

Finalmente terminou o banho caprichado, deixando o cheiro do sabonete Lux percorrer todo o apartamento. Foi para o quarto, envolvida pela toalha branca e macia. Era hora de explorar territórios inóspitos e lidar com a amnésia: como se colocava um sutiã?

Após superar o hábito de não se arrumar, criado pelo lockdown, saiu do quarto. O perfume no corpo dava a sensação de um banho de rosas, e a roupa íntima já estava “segurando os caídos”, como afirmava a avó Alexia sobre seus cinco quilos de mama, diferente dos ainda levantados  —  e do tamanho de uma uva  —  seios de jovem adulta. 

Foi à cozinha, onde a mãe ouvia a música do padre famosinho no rádio. A letra, um tanto cômica, ilustra Maria, a genitora de Deus, passando na frente dos fiéis e pisando na cabeça de um adversário reptiliano, vulgo serpente, vulgo Satanás.

—  Bom dia, mãe.  

O sorriso no rosto parece esconder todas as brigas que tiveram após o início da quarentena, onde as duas, mãe e filha, foram obrigadas a passar mais de duas horas no mesmo local.

 —  Samantha, vai mesmo querer ir no shopping hoje, filha? O número de mortes só aumenta, o presidente não faz nada. Ainda inventam de abrir as lojas, estamos perdidos. Vocês tem aplicativos para pedir absolutamente tudo hoje em dia.

 — Mãe,  — começa na entonação de um longo manifesto  — a senhora sabe que eu não aguento mais ficar presa nessa casa, né? Além do mais, a gente nunca consegue tudo o que quer nesses aplicativos, e eu não posso mais continuar vivendo sem as minhas coisas!

A mãe, conhecendo bem o gênio de Samantha, resolveu não discutir. Amélia sentia preocupação com a saúde da filha, mas como culpá-la por querer sair da prisão que o lar se tornou? Além disso, não podia perder tempo discutindo, tinha que cuidar dos afazeres de dona de casa. No fundo, também odiava a quarentena, que a destituiu de seu cargo de professora universitária e a colocou na posição de dona de casa.

Feliz da vida, a jovem caminhou em direção à porta da casa, sentindo a doce sensação de liberdade, que parece tão irreal quanto uma boa fantasia literária. Permitiu-se sonhar um pouco enquanto percorreu o corredor em direção à saída.

O caminho para a rua se misturou à boa e velha fantasia narniana, alcançada pela porta da frente, ao invés do guarda-roupa mágico. Mal pôde esperar pelo cheiro das árvores que devem ter crescido no lugar dos prédios, onde pássaros cantam e a vida natural se desenvolve sem a interferência humana.

Não, tudo normal na rua. Os prédios não saíram do lugar, e pior: o caminhão do lixo não passara na noite anterior, e o cheiro de comida estragada e podridão se espalham, vindos da calçada ao lado. Talvez Nárnia fosse mesmo a melhor opção.

Pediu um Uber, um sonho se tornando real após oitenta e quatro anos de solidão, ainda eram nove e meia, e o prédio só abrirá às dez. Tempo suficiente para curtir a viagem e ainda ficar “sentadinha” nos bancos do corredor do shopping. Ao chegar, postaria tudo nos stories, claro, talvez estimulasse as pessoas a saírem de casa normalmente.

O carro parou no local combinado. Protegeu-se com a armadura para o nariz e boca – vulgo, máscara – além da arma mais eficaz contra o vírus que a manteve em cativeiro: álcool em gel. A viagem pareceu atrasar devido ao engarrafamento das ruas da cidade. Imaginou que fossem pessoas que iam ao hospital. 

Nunca passou pela cabecinha de Samantha que todas aquelas pessoas também estariam indo lotar os comércios, mesmo com as indicações das autoridades. Até que a fila na frente do shopping, que dobrava esquinas como só um show internacional poderia fazer, destruiu toda e qualquer expectativa de chegar em casa antes do dia seguinte.

Não se dando por vencida, a guerreira esperou na fila por quatro horas até entrar no shopping, caminhou sem pressa até a loja que ficava no térreo. Precisava aproveitar o retorno.

Samantha ainda teve que esperar por um longo período até conseguir passar pelas portas das Lojas Americanas. A garota gênio, que acreditou que só ela teria a ideia brilhante de visitar o shopping no primeiro dia de abertura, pôde finalmente comprar tudo o que precisava. 

Dirigiu-se às prateleiras vazias do estabelecimento, escolheu com cuidado. A viagem precisava valer a pena. A caminho do caixa desocupado, permitiu-se pegar algumas guloseimas como troféu pela viagem bem sucedida, a aventura que a permitiu transcender e se tornar melhor que o sistema e seu vírus assassino.

Pagou pelos produtos sob o olhar surpreso do atendente. O esmalte vermelho custou cinco reais.

 

8 thoughts on “A Compra”

  1. Gostei muito da crônica, só achei que o final ficou um pouco vago. Me lembrei de cara de algumas pessoas que conheço que saíram para os shoppings assim que abriram… sem comentários!

    1. Tá cheio de gente assim, né? Só aumenta a raiva de fazer nossa parte, enquanto algumas pessoas desfilam por aí.
      Boatos que sutiã se tornou uma peça rara nessa quarentena haha

  2. Estampado Nos Livros

    Amei! É olhando essa crônica refletindo bem como as pessoas estão nesses dias é bem assustador, mas a realidade. Aqui na minha cidade interior do MS, as pessoas não estão nem ligando, andam sem máscaras, querem sair sem ter um motivo que seja concreto e tem as festas as escondidas. Como pode ter gente assim né? Muitos zombam dos que usam máscaras, outros nem contam que estão com Covid com medo das pessoas a excluírem, deixando de proteger as pessoas que ela coloca em risco com essa ignorância! Triste! Amei a crônica e o modo como escreveu, sem ficar muito pesado e tendo humor.

    1. Fico feliz que tenha gostado da crônica <3
      Mas é realmente triste saber que nem todos estão levando o lockdown a sério, enquanto as mortes aumentam todos os dias, eu sinto uma sensação de impotência enorme.
      Mas vamos fazer a nossa parte e continuar em casa, né? É o que podemos fazer no momento.

  3. Litera_amor1.0

    Gostei da crônica. Tão atual, Samantha vivia em uma bolha, mesquinha achava que liberdade tinha só haver com sair de casa, quando não conseguia ter um bom convívio com a mãe. Nesse ponto, ressalto que quase ninguém suporta o confinamento, nem eu me suporto. Já com relação a compra, espero que tenhamos um consumo consciente, deixar de se importar com coisaa supérfluas

    1. Eu já estou cansado de conviver comigo mesmo nessa quarentena, também, mas é importante pensar nas pessoas ao redor e no sistema de saúde, né? Não podemos ser Samanthas e fechar os olhos para isso tudo.
      Fico feliz que tenha gostado da crônica <3

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